O analfabeto aos poucos tende a desaparecer e com ele termina um ciclo da cultura popular. No seu lugar nasce seu sucessor mais próximo e imediato, um novo indivíduo, fabricado para ser um consumidor fanático. O analfabeto está sendo transformado em semianalfabeto, para alguns, cerca de 90% da população do nosso querido Brasil.
Os dois têm pontos em comum, mas têm suas diferenças. Os primeiros, nossos antepassados, livres do domínio de seus atuais donos, vivendo mais isolados em seus grupos - ainda não existia a “aldeia global” - foram mais criativos, inventaram as ciências, as pinturas, canções, escritas e estabeleceram os valores. Os semianalfabetos, ao contrário, nada criaram, seguem cabisbaixos seus donos.
Estes, ainda que possam parecer atraentes por fora, são vazios por dentro. Uma vez promovidos a semialfabetizados, prenderam-se nas redes preparadas pelos que os ensinaram a ler e a escrever, tornando-os presas fáceis de serem manipulados pelas classes empresariais que ajudaram a criá-lo e que passaram a ser o tutor desse grupo. Hoje o semialfabetizado representa o principal cidadão-alvo do comércio, é o homem comum, o medíocre, o fácil de ser manipulado.
No lugar da cultura popular criada pelos analfabetos, seu antecessor nada produziu. Não temos e nem teremos uma cultura do semianalfabeto, vai morrendo a cultura popular, talvez enlaçada com a cultura sofisticada.
O grupo dos semialfabetizados vai, pouco a pouco, aumentando seu número. Fabricado aos milhares sem cuidado ou técnica apurada, dentro do modelo usado na fabricação dos chinelos de liga, eles diferem, tanto do seu irmão analfabeto livre e mais reflexivo, como do outro, o culto, o acostumado a ler, construído duramente, um a um, com cuidado e dedicação. Apesar disso, os semialfabetizados estão alegres, sorriem, mostrando os dentes claros e brilhantes para seus proprietários. É uma felicidade ingênua, estranha e servil.
Seus senhores, principalmente os políticos, sempre bem acompanhados e protegidos pelos empresários, conhecedores do fim dos seus produtos e dos investimentos feitos, manipulam cuidadosamente estes infelizes para alcançarem seus objetivos. Fornecem-lhes cartilhas para lerem, textos simples, de fácil compreensão, nada de complicado, propositadamente preparados para eles. Os textos fáceis, digeríveis na primeira passagem, carregados de noções falsas, têm como finalidade básica impedi-los de pensar por si, isto é, de usar suas mentes num programa de benefício próprio. Mas a presença dos livros, a ida às aulas, as amizades formadas nas escolas conseguem diverti-los, bem como mantê-los unidos. Entretanto, dada a simplicidade do estudo lecionado, na maioria das vezes por pessoas não-sofisticadas, eles se transformam em pessoas ainda mais incapazes de fazer uso da inteligência e crítica. Como robôs, aprendem a comportar-se em blocos, não mais como indivíduos, a pertencer a um certo partido político e votar num determinado candidato, a seguir a religião em moda, a comprar certas mercadorias, a defender certas ideias desconhecidas, escondidas e nunca acessíveis a eles.
Estes pseudoalfabetizados foram construídos para seguirem os comandos, não para pensarem, jamais refletirem e perguntarem: “o que quero, o que devo fazer com minha curta vida?“. Orgulhosamente, de modo semelhante a outros animais, mais abaixo na escala zoológica, como cães, galos e lagartos, eles buscam o fundamental da vida animal: alimentar-se, procriar e ter sua toca para lhes dar segurança contra os predadores, que são, principalmente, os próprios dirigentes aliados a eles.
Eles vivem quase que exclusivamente o momento presente, o “aqui e agora”, transmitidos com orgulho, enquanto seus proprietários, desejando vender aparelhos e ideias, planejam o futuro onde eles são os consumidores cegos. Eles respondem aos estímulos do meio ambiente de forma direta, sem intermediação de seu “Eu”, pois este foi bloqueado, encontra-se enferrujado, incapaz de ser usado.
Não possuindo planos individuais próprios, estes indivíduos agem como certas espécies de animal: formigas, abelhas, cupins. O indivíduo separado existente dentro dele, com história própria, foi assimilado pelo grupal, pelo social, que é valorizado acima de tudo. Todos têm as mesmas ideias, os mesmos ideais, os mesmos instrumentais para chegarem onde supõem querer, as mesmas alegrias e tristezas, todos seguem os mesmos planos do grupo coeso. Não há dissidentes. Num programa de auditório é fácil verificar este comportamento: a pessoa escolhida para opinar na roleta da sorte, antes de decidir a resposta a escolher, sempre ouve o auditório. É a voz do grupo, do qual ela faz parte, que decide; o grupo sentencia se ela deve parar de apostar e ganhar um prêmio menor, ou continuar e arriscar-se a perder tudo.
Seus ouvidos, estão presos ao auditório, este lhe ordena, na ausência do chefe, o que deve fazer. Ela obedece servilmente, com naturalidade e sorridente, ao comando externo.
Os semialfabetizados, iguais na conduta, têm, entretanto, diferenças em algumas características, que são exibidas com orgulho, tais como a impressão digital, o CPF, a rua e o número da residência, o modo de escrever a primeira letra do seu nome e ainda o modo de pentear o cabelo e de fazer a macarronada.
Eles não possuem uma mente crítica individual, baseada na sua história pessoal diferente dos seus outros irmãos da mesma espécie. No seu ingênuo modo de pensar, ignorante da própria ignorância, este indivíduo, confiante ao se julgar, percebe-se como bem informado e capaz, pois lê determinadas revistas, por sinal muito instrutivas. Sua mente pouco trabalhada e quase sem ser usada, permitiu-lhe decifrar, orgulhosamente, as instruções de manejo de cartões de banco, de instrumentos do seu trabalho rotineiro, de ligar o aparelho de televisão, de ir aos restaurantes e comer com os talheres apropriados, de conhecer as roupas que estão na moda, de conhecer e viajar para os lugares “badalados”, de usar a nova cueca lançada, o perfume moderno, a nova aplicação bancária e muitas outras atrações sedutoras do mesmo gênero, que indicam informações importantes para se viver. Coitado!
Tudo nesse mundo de Deus tem suas vantagens. Proibidos de pensar, os semialfabetizados não se sentem culpados por possuir uma mente quase nula. Estão tranquilos, talvez não sofram infartos, hipertensão arterial, úlceras e insônia, como ocorre com seus donos, sempre preocupados com os sucessos e insucessos dos planos.
Com pouca ou nenhuma vontade própria, impedidos de tomar decisões particulares, sem responsabilidade por suas ações, eles caminham, moribundos, para seu fim. Descartando o complicado, evitando aprofundar-se nas tarefas e soluções que exigem cadeias de raciocínios longas e tortuosas, eles vivem felizes na sua gaiola de bambu, onde existe cama, sexo e comida, desfrutando da liberdade imaginada e que eles não têm.
Estão sempre esperando alguém: “as autoridades”, os mais “inteligentes”, os espertos pensarem e resolverem seus problemas, decidirem por eles.
Seu amor romântico é imbecil. Para este grupo, “amar” significa a posse da pessoa amada. Quando estes indivíduos dizem “eu te amo”, a frase indica ”eu preciso de você, sem você minha vida será uma desgraça, pois não tenho mais ninguém para pensar por mim, para ajudar-me, encostar-me, estou perdido, nada tenho para dar, preciso receber seu apoio e sua piedade”.
No amor este grupo nada oferece, nada dá, exige do outro responsabilidade por sua vida, que eles não têm. Mas chamam tudo isto de “amor”, de “gostar” muito do outro. Quando percebem que não podem receber do amado o apoio desejado, o amor que ele próprio não tem dentro de si, que terá de dar algo que ele jamais pensou em possuir, este indivíduo retira-se frustrado por não ter sido amado. Na sua mente ele amou muito, deu muito de si: deu o nada para o outro.
Este grupo tem como lema fundamental: “É preciso aproveitar a vida”. Tal afirmativa significa: distrair-se o mais que puder, esquecer que está vivo, que não comanda suas ações, que não manda na sua vida. Eles precisam se divertir, continuamente, com as brincadeiras fornecidas e preparadas pelo mundo externo a ele. Ler o livro mais vendido, ir ao parque no domingo, dançar no baile dos idosos ou do carnaval, comprar o bilhete da loto, ir ao jogo ou vê-lo na TV. Estas diversões são organizadas com precisão matemática pelos senhores do poder, governo e empresários, de modo a dar tudo certo. As autoridades sabem o que é melhor para ele, mais do que ele próprio, pois lhe faltam os instrumentais capazes de fornecer um retrato de si mesmo, de se autoexaminar com alguma precisão, seu diagnóstico é sempre dado pelos de fora.
Lamentável e criminosamente sua mente foi lacrada, muito bem fechada ainda muito cedo, impedindo a invasão de incômodas ideias capazes de fazerem desmoronar crenças firmes, pilares vindos de longe, infelizmente muitos deles já podres. Nada de ideias novas, principalmente as diferentes das costumeiras, das antigas e repetidas pelas suas sábias mães virtuosas e dignas de crédito. Estes indivíduos fogem como podem da intromissão de teorias contrárias às suas, que poderiam desmoronar, abruptamente, tudo o acreditado, destruir para sempre seu frágil sistema de pensamentos mal arranjados, sua instável estrutura mental mal elaborada e mal pregada em estruturas tortas, em princípios duvidosos, muitas vezes mágicos.
Apoiado em fundamentos adquiridos na cultura onde foi educado, sem dúvidas, o semianalfabeto recusa submeter-se a investigações internas, a reflexões acerca da validade ou não dos pilares que deram origem ao seu raciocínio. Sua segurança está fora dele, apoia-se nos outros - “o presidente falou”, “meu chefe me disse”, “li no jornal” - nos proprietários de suas ideias, ou mesmo nos seus amigos de infortúnios ludibriados pelas mesmas crenças: - “tenho certeza disso, todos nós pensamos assim”. Como ele está bem acompanhado, pela maioria da população, confiantes no falso princípio de que a “maioria tem razão”, ou que “a voz do povo é a voz de Deus”, o semi-analfabeto sente-se protegido, confortável e até feliz. Não perderá seu precioso tempo com bobagens, tais como refletir acerca de si ou do mundo em que vive. Precisa, sim, divertir-se, assistir à novela das oito. Semimorto como indivíduo, vivendo apenas como espécie, o semianalfabeto não tem forças para examinar se sua vida vale a pena ser vivida como está, ou se deve ser destruída, mudada, para construir outra mais digna do homem que ele poderá vir a ser.
Fonte: Galeno Alvarenga- Psiquiatra / Neuroligista
Nenhum comentário:
Postar um comentário